sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

fragmentos sobre o piá, as crianças e a cidade

por Marília Carvalho


Sobre ocupar a cidade

Esse foi meu segundo ano de PIÁ e uma nova dimensão do programa se mostrou para mim: de Sapopemba (onde atuei em 2014, no CEU Sapopemba) à Vila Buarque (onde atuei em 2015, na Biblioteca Monteiro Lobato), várias faces da mesma cidade: diferentes formas de estar no mundo e de olhar pra ele. Relações que mudam quando mudamos de lugar: com o espaço público e as pessoas que trabalham nele, com o entorno, com as famílias, com as crianças, entre as crianças e assim por diante.
Pensar genericamente em infância não dá conta das crianças que se jogam no barranco de terra em Sapopemba e ao mesmo tempo das crianças da Vila Buarque, pra muitas das quais é perigoso subir, descer, sujar, cair, ir ao chão. Pensar na cidade como um todo, uma coisa só, não dá conta da distância que separa o minhocão do monotrilho que nunca vi terminado em Sapopemba.
Em 2015 percebi que no que chamam centro da cidade há mais moradores de rua e menos pipas no céu aos fins de tarde. Percebi a organicidade do PIÁ para adentrar a cidade e seus espaços e permitir que eles nos adentrem também. Esse lugar de considerar e trabalhar com as diferenças dos corpos que ocupam cada espaço. Um lugar de permitir olhar, conhecer, penetrar, envolver-se ao invés de despejar qualquer coisa pronta pretensiosamente pré-definida por um olhar estranho, estrangeiro, alheio aos espaços e aos corpos que os ocupam.
Acompanhando agora a luta dos estudantes secundaristas diante da truculência e falta de diálogo do governo do Estado de São Paulo (que, com a reorganização escolar, pretende fechar várias escolas e conseqüentemente superlotar muitas outras) se torna evidente a urgência dessa resistência e coragem pra ocuparmos os espaços que são nossos com a vida que acreditamos e queremos.


Sobre o mesmo que apesar de

Construímos uma cidade com as crianças de oito a dez anos. Começou despretensiosamente, com algumas texturas e colagens sobre um rolo de papel kraft que não acabava nunca. Aos poucos começou a ganhar forma, a surgir lugares: teatros, aquários, escolas, parques. Por onde começamos uma cidade?
Segundo o dicionário, lugar é um espaço ocupado por um corpo. Percebemos que a nossa cidade estava pouco habitada, então providenciamos a ela um pouco de vida, humana e animal. Também faltava verde e sombra e assim foi indo, se enchendo de cores e imaginação. O que queremos que tenha na nossa cidade? sobrava sol, uns quatro, pelo menos. Nessa cidade não pode ter coisa ruim, falou o Emerson. Mas o que a gente acha que é bom é bom pra todo mundo? Vai ter Mc Donalds na nossa cidade? Mc donalds é bom pra todo mundo? Pra quem não é?
A cidade foi se transformando ao longo do semestre. De tempos em tempos esquecida e lembrada, modificada sempre que voltávamos a ela. A construção e a desconstrução, escolher junto e fazer parte vinha à tona sempre que voltávamos a trabalhar nela. As técnicas, das mais variadas possíveis. Pó de giz de lousa colado, tinta, adesivos, folhas e galhos, canetas coloridas.
Nesse ponto, faço um parenteses necessário quando me pego pensando o quanto esse “se vira nos 30” que nos encontramos constantemente no PIÁ é prejudicial à valorização do nosso trabalho. Mesmo que apesar da falta de material, de cola e fita crepe e tinta, a gente inventa e reinventa nossos espaços. Para dar mais cor à cidade, leveimateriais pessoais meus, canetas e papeis e adesivos, pois o pouco que tínhamos disponível na biblioteca estava péssimas condições. Relutei pensando que se a gente dá conta com o pouco, se a gente se dá pra dar conta das coisas da maneira como gostaríamos que fosse, continuarão nos vendo como quem não precisa de mais. Mas mais não seria demais, seria possibilitar condições mínimas para o trabalho ao qual nos propomos.

Pode ser. Reconheço que foi por amor e, principalmente, por querer expandir as possibilidades de experimentação diante daquela cidade a princípio um pouco pálida, que levei materiais de trabalho meu e confiei que as crianças cuidariam bem deles, e assim o fizeram. Mas antes disso, não é por amor que trabalho, não foi por amor que escolhi a educação e a arte (sempre bom pontuar isso para não perdermos de vista a seriedade com a qual nosso trabalho deve ser encarado). Não é motivo de admiração ou orgulho tirarmos do nosso próprio bolso para realizar nosso trabalho, é antes motivo para continuarmos questionando essa precariedade com a qual aprendemos a lidar e exigindo condições melhores (não apenas no que diz respeito aos materias).
Esse processo material da construção coletiva da nossa cidade com as crianças me fez pensar sobre como a cidade onde vivemos também é construída e vivida à medida do apesar de: apesar do trânsito, das filas, do preço do busão, da falta de água, dos alagamentos, da violência policial, da insuficiência e ineficiência da maioria dos serviços públicos, da falta de lugares para estar e a sobra de lugares para passar, apesar de tudo isso a gente vai levando...

Já quase pronta, nossa cidade foi batizada pelas crianças de Todosnópoles. Nela, onde tudo foi decidido, conversado e feito coletivamente, caberia todos nós e caberia a todos nós garantir que seus espaços fossem ocupados por corpos, que esses corpos dissessem respeito às pessoas e que as pessoas pudessem criar esses lugares para e com pessoas.



Sobre andança com criança criando dança

Ando sozinha pelo centro da cidade. Vou e volto no meu tempo. Atravesso no farol vermelho quando acho que dá, faço o caminho mais ongo quando não tenho certeza de onde estou indo.
O caminho é sempre outro quando não estamos sozinhos. Muda o passo, muda o ritmo, muda o olhar, muda a atenção. Sair da biblioteca Monteiro Lobato e caminhar até a Galeria Olido, passar pela Praça da República, atravessar apenas na faixa, esperar ansiosamente pelo farol verde. É no verde que se atravessa.
Nessa curta caminhada, as crianças pré-adolescentes faziam muita questão de demonstrarem o que já conheciam do bairro ou dos atalhos manjados pra chegar ao mesmo lugar. Minha vó mora ali, meu pai trabalha ali, dá pra irmos por aquela rua. Pertencer: ser próprio de. Foi muito bom estarmos juntos forma da caixinha da biblioteca, em geral gelada e silenciosa. Muitas das crianças por ali passam a maior parte do tempo dentro dos prédios e condomínios, muitas vezes sozinhas. Uns não sabiam o que era camelô (ou pelo menos não os entendiam sob este nome), outros acharam super subversivo parar pra olhar os dvds de filme pornô expostos à venda na calçada.
Percebi nesse trajeto como era de se estranhar, aos olhos dos que passavam, um grupo de crianças andando junto pelo centro da cidade. E por isso mais uma vez percebi o quanto falta espaço ou falta acesso para que as crianças possam também ocupar e se apropriar dessa cidade.
Acesso, neste sentido, não é apenas portas abertas, não é só direito a acessar espaços e ideias, não é só arquitetura que convida a ficar ou localização geográfica. Acesso não é só poder estar dentro, mas ter também a sua vivência refletida nas escolhas dos modos de ser da cidade. O acesso diz respeito não só às ‘ilhas’, mas a todo mar envolta delas que as impede de ser um continente, o acesso implica principalmente em ver a cidade como organismo dinâmico feito de escolhas políticas e poéticas passíveis de serem transformadas.
Fomos até a Galeria Olido para sermos repórteres do evento Criança criando dança. Chegando lá, encontramos diversas salas e muitas crianças dançando pra lá e pra cá. Nosso combinando para o caminho , de estarmos juntos, já não valia mais naquela ocasião. E como dá gosto ver a autonomia deles para entrar e sair, ficar, parar, olhar, participar do que dá vontade. Tantas escolhas, tantos corpos pra ocupar aquele mesmo lugar. Olhar a cidade do oitavo andar.
Na volta, nossos corpos estavam muito mais soltos e à vontade para deslizar por aquelas ruas cinzas e movimentadas do centro. Caminhávamos sem nos perdermos de vista e o combinado agora era: atravessar pisando só na faixa branca. Girando. 


Derivada do latim, a origem da palavra percurso implica em um deslocar-se apressadamente, correr. percurso pressupõe movimento, um espaço percorrido no tempo. percurso não existe antes de ser percorrido. ele está no trajeto que fizemos até o presente, e será as escolhas que faremos daqui pra frente. Escolher o passo, o ritmo, o tempo, os lugares onde pisar e outros para desviar. Escolher caminhar sobre as pedras ou aprender com elas sua assimetria concreta de ser pedra. Com elas des(cons)truir versos e castelos. Construir outros. E assim por diante, adiante.

[reflexo na vitrine da galeria olido]

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