segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Potencializando o corpo: uma experiência libertária no Piá

Artista educador: Elisa Araújo
CEU Jardim Paulistano


Meu primeiro ano de Piá. Chegada. Expectativa. Sonho. Finalmente um espaço para trabalhar, vivenciar, trocar, experimentar e fazer arte com criança da maneira que sempre quis. Da maneira que gostaria de fazer, que tentava e insistia em fazer em outros espaços. Espaços que impunham limites. Restrições. Enquadramentos. Que dificultavam a experimentação, o envolvimento, o arriscar-se e descobrir-se verdadeiramente. As trocas. O contato.
E na chegada me deparei com outros limites. Limitações impostas pela precariedade da estrutura física do espaço. E barreiras construídas nas próprias crianças. Crianças que não se permitiam serem crianças. Que não sabiam como imaginar. Que não se permitiam experimentar, perceber. Olhar. Ousar. Falar. Crianças que não acreditavam. Que não se percebiam, que se escondiam. Tolhidas. Crianças com corpos fechados. Fechados, porém cheios. Cheios de conteúdos, processos, vivências, vontades latentes.
E como trazer a percepção desse corpo? De tudo aquilo que está impresso, expresso e vivo neste corpo? Como transpassar a barreira e trazer o olhar, sentir, perceber de cada um deles ? Como deixar transbordar os conteúdos, emoções impressões e pensamentos? Como fazer cada criança entrar em contato e perceber-se, e ainda se colocar e saber que pode modelar e transformar e inventar tudo aquilo que sai dela?
E foi devagar. Foi com a escuta e a troca. Entre as crianças, entre nós, entre as parceiras AEs, e nas paisagens do CEU, e no contato com os outros corpos que transitavam naqueles espaços.  E foi num apoio de pé, num movimento de bacia, numa brincadeira de estátua. E quanto mais eu entrava e colocava meu corpo inteiro e disponível e expressivo e inventivo e artista no movimento com eles, mais eles soltavam os deles. E soltando o corpo sem perceber, se envolvendo inteiro no brincar, os elementos foram surgindo, as idéias aparecendo, e mundos foram nascendo. E mundos foram crescendo. E as crianças foram se tornando seguras de si, percebendo possibilidades. Se permitindo experimentar. Foram experimentando, inventando, ampliando os corpos para além de seus corpos. E os corpos foram ganhando potência cada vez maior, a partir do momento em que percebiam e permitiam visualizar possibilidades. Encontros. Transformações. E em determinado dia, pelos jardins do CEU, na troca com quem passava, com algumas crianças bem pequenas que observavam, a brincadeira virou poesia, dança, cena, arte! E quanto mais envolviam o “público” ali instaurado pela potência de sua expressão e de seus corpos em movimento, mais se permitiam transbordar, expressar e modelar os conteúdos e percepções de mundo em forma de arte.  Mais conscientes de si se tornavam, mais conscientes e autônomas, mais libertas para dizer o que precisam e querem dizer. Sem medo. Abertas. Acreditando e fazendo e transformando realidades em novas realidades. Enxergando mundos dentro de outros mundos, vislumbrando, perseguindo e modelando possibilidades. E trazendo e misturando com clareza a vivência cotidiana e real, com a possibilidade e a fantasia.
Foi um processo lindo, de entrega profunda e quase devoção. De muitas rupturas, quebras de ritmo, ruídos ensurdecedores, falta. Carência. Precariedade. Falta de tempo, tempo esgarçado. Exaustão. Mas o mergulho precisava ser profundo, pra trazer à tona a potência libertadora e transformadora para cada um de nós, e todos nós como um.


“A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime, instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos – a pessoa do ator, as cores e a tela do pintor – de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo.” (Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da Percepção. P.248)





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